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Cinema, Memória e Justiça: A Influência Política do Filme “Ainda Estou Aqui”

Acaba de acontecer o “Oscarnaval” que o país tanto esperava: o filme “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles, ganhou na noite deste domingo, 2 de março, o prêmio da categoria de melhor filme internacional na 97ª cerimônia de entrega do Oscar, em Los Angeles. Para além do significado imenso de finalmente trazer a icônica estatueta para o Brasil, o filme consolida sua influência na história política do país, por motivos muito mais relevantes do que o prêmio em si.

Cartaz de filme indicado de Ainda Estou Aqui: à despeito do resultado da premiação, importância política e histórica do filme já é gigantesca no Brasil.

Com a enorme repercussão do longa, familiares de mortos e desaparecidos políticos e movimentos sociais assistiram a alguns tímidos, mas importantes, avanços em suas demandas por memória, verdade, reparação e justiça pelos crimes da ditadura militar.

O Brasil lida muito mal com seu passado ditatorial. Não levamos os torturadores para o banco dos réus, não construímos museus sobre o período, não localizamos os corpos dos desaparecidos, não reformamos nossas Forças Armadas e nossas polícias. A ausência dessas e de outras medidas abre caminho para a repetição da violência do Estado, seja na forma do genocídio negro nas favelas, seja na forma do 8 de Janeiro.

Avanços tímidos e desmonte

É certo que houve avanços, e o filme aborda dois deles. O primeiro é o momento em que a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) entrega à Eunice Paiva (personagem de Fernanda Torres pelo qual ela concorre ao Oscar de melhor atriz) o atestado de óbito do seu marido Rubens Paiva, 25 anos paós seu sequestro, desaparecimento e morte. Na cena, que reproduz fielmente a vida real, a fala de Eunice sobre como “é estranho comemorar” o recebimento de um documento daquela natureza é emblemática da importância e dos limites da lei 9.140/1995, que criou a comissão.

Pois não se tratava de localizar os corpos dos desaparecidos, muito menos de responsabilizar os assassinos. Era singela e tão somente permitir que algumas das vítimas fossem finalmente reconhecidas oficialmente como pessoas mortas, para fins meramente civis.

Fernada Torres, no papel de Eunice Paiva, reproduz o momento em que ela consegue, vinte anos depois, a certidão de óbito de seu marido Rubens Paiva, sequestrado,torurado e mortopela ditadura brasileira.

O segundo momento é o da Comissão Nacional da Verdade (CNV). Atuando quase 20 anos após a CEMDP, a CNV logrou desmontar de vez a farsa que os militares haviam criado para justificar o assassinato de Rubens Paiva. A família teve, enfim, o direito à verdade. Mas, novamente, sem qualquer perspectiva de justiça.

O pouco que a CNV fez, no entanto, foi muito para os militares. Não à toa, a entrega do relatório da comissão coincide com a decisão das Forças Armadas de retornarem para o primeiro plano da vida política nacional.

Daí em diante conhecemos o roteiro, com o projeto político-militar em torno de Jair Bolsonaro e todas as mazelas que ele trouxe ao Brasil. Inclusive, é bastante simbólico que um dos últimos atos de seu governo, promovido ao mesmo tempo em que militares tramavam um novo golpe de Estado, foi a extinção ilegítima e ilegal da CEMDP.

Filme traz nova esperança de justiça

O completo desmonte das políticas de memória e reparação operado por Bolsonaro foi sendo paulatinamente (e, mais uma vez, de forma bastante tímida) desfeito por Lula. A recriação da Comissão de Anistia no primeiro ano de governo e da CEMDP em 2024 foram importantes sinalizações, mas ainda havia, entre os movimentos sociais que atuam nessa pauta, enorme insatisfação com a limitação das medidas adotadas. Com o sucesso do filme, há uma nova esperança.

A maior expectativa veio com uma decisão do Ministro do Supremo Tribunal Federal Flávio Dino, em que ele determina que a Lei de Anistia de 1979 não é válida para o crime de desaparecimento forçado. Na decisão (citada no filme), o Ministro acata o argumento de que a ocultação de cadáver é um crime continuado, cujos efeitos não cessam até que o corpo apareça.

Como a lei de 1979 anistiou os crimes que haviam sido cometidos até aquela data, então ela não pode abarcar os desaparecimentos. A decisão, caso seja acompanhada pelo restante do STF, pode fazer com que finalmente os que torturaram e assassinaram em nome do Estado tenham de responder à justiça.

Outro avanço ocorrido na esteira do filme tem a ver exatamente com os atestados de óbito. Finalmente o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) acatou uma das recomendações da Comissão Nacional da Verdade de retificar esses documentos. Até então, a causa da morte aparecia como “Lei 9.140/1995” (trata-se da lei que criou a CEMDP). Agora, deverá constar: “morte não natural, violenta, causada pelo Estado a desaparecido no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política no regime ditatorial instaurado em 1964”.

Nas primeiras semanas de 2025, a imprensa brasileira noticiou que, no contexto dessas mudanças, o governo estaria preparando um ato oficial de pedido de desculpas às famílias das vítimas da ditadura. Caso se concretize, o evento será exemplar de como a maré mudou para essa pauta.

O filme também tem potencializado ações não oficiais sobre a temática. Um exemplo é a exposição “Rua da Relação, 40 - Testemunho material da violência de Estado”,  que ficou em exibição no Museu da República, no Rio de Janeiro, entre janeiro e fevereiro de 2025. A mostra trata do prédio onde funcionou o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) do Rio de Janeiro, e, embora já estivesse planejada desde antes do filme, tem recebido grande atenção, dada a centralidade que o tema está tendo no debate público. O objetivo da exposição é chamar a atenção para a ausência de um museu sobre o período no Rio de Janeiro e demandar que o referido prédio seja transformado num espaço de memória dos direitos humanos.

Críticas geram debates valiosos

Até mesmo quando criticado, o filme tem sido capaz de levantar importantes debates. Os apontamentos feitos pelo professor e sociólogo da USP Thiago Torres - conhecido pelo seu canal no YouTube “Chavoso da USP” - sobre a prevalência de uma narrativa branca e de classe média sobre a ditadura geraram enorme discussão.

A despeito de eventuais exageros típicos dos discursos de redes sociais, essas críticas têm fundamento. De fato, prevalece até hoje uma imagem limitada de quem foram as vítimas da ditadura no Brasil, que subdimensiona a violência que se voltou contra os povos indígenas e as populações negras e periféricas, por exemplo.

Este está longe de ser um problema específico de “Ainda Estou Aqui”, mas é uma marca mais geral da produção artística e mesmo acadêmica sobre o período. Nesse sentido, se essas críticas se desdobrarem numa potencialização de outras narrativas sobre o período (como por exemplo o podcast Chumbo & Soul, produzido pela Rádio Novelo, que traz a história da ditadura a partir de uma visão afrocentrada), aí estará mais um mérito do filme.

Há, ainda, outra questão que se tornou incontornável devido a uma coincidência temporal. A onda de sucesso do filme coincidiu com as revelações da PF sobre os intentos golpistas de 2022. Assim, o filme ajudou a chamar a atenção para qual é o tipo de regime que Bolsonaro e seus militares gostariam de ter implantado à força no país. Nesse sentido, uma discussão mais ampla sobre as próprias Forças Armadas e a necessidade de reformas institucionais em seu interior também ganha força.

Por tudo isso, para além de seus méritos propriamente artísticos e cinematográficos, “Ainda Estou Aqui” já adquiriu uma enorme importância política. O Oscar veio, pelo cinema brasileiro, por Fernanda Torres (e por sua mãe!), e que com ele venha também o impulso para potencializar ainda mais todas essas lutas pelas quais, há tantas décadas, mobilizam Marias, Clarices e Eunices.

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Cinema, Memória e Justiça: A Influência Política do Filme “Ainda Estou Aqui”

O filme “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles, transcende sua realização cinematográfica ao se posicionar como um agente catalisador das discussões em torno da memória, verdade e reparação dos crimes cometidos durante o regime militar no Brasil. A obra, recentemente premiada com o Oscar de Melhor Filme Internacional, simboliza tanto um reconhecimento internacional do cinema brasileiro quanto uma nova esperança para as lutas históricas em prol da justiça e do reconhecimento das vítimas da ditadura.

1. O Cinema como Espaço de Reflexão Histórica

A narrativa do filme dialoga com dois momentos emblemáticos que ilustram as limitações e os avanços das políticas de memória no país. Por um lado, a cena em que Eunice Paiva recebe, vinte e cinco anos após o desaparecimento, o atestado de óbito de seu marido Rubens Paiva, exemplifica a ação limitada da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP). Essa cena, baseada em fatos reais, evidencia a insuficiência de medidas que, embora permitam o reconhecimento civil das vítimas, não promovem a responsabilização dos autores dos crimes cometidos pelo Estado.

Por outro lado, o filme retrata o trabalho da Comissão Nacional da Verdade (CNV), que, duas décadas após a atuação da CEMDP, desconstruiu as narrativas oficiais utilizadas para justificar os assassinatos durante o regime. Essa reconstrução histórica foi decisiva para que as famílias tivessem acesso à verdade, mesmo que sem a plena consecução da justiça, evidenciando a tensão entre o reconhecimento dos fatos e a busca por responsabilização penal.

2. Implicações Jurídicas e Políticas

A obra cinematográfica ganha ainda uma dimensão política mais ampla ao acompanhar e potencializar avanços recentes no campo jurídico e institucional. A decisão do Ministro do Supremo Tribunal Federal Flávio Dino, que afastou a aplicação da Lei de Anistia de 1979 para os casos de desaparecimento forçado, representa uma ruptura com a impunidade histórica e abre a possibilidade de responsabilização daqueles que atuaram em nome do Estado durante a ditadura. Essa medida, acompanhada pela alteração na forma de registrar os atestados de óbito – de uma referência meramente burocrática para uma narrativa que reconhece a violência estatal – evidencia um movimento, embora tímido, de reparação e de resgate da memória das vítimas.

3. O Debate Crítico e a Ampliação das Narrativas

Apesar dos avanços, o filme também tem sido alvo de críticas que apontam para uma narrativa insuficientemente plural. Críticos como o sociólogo Thiago Torres destacam que a produção cinematográfica pode reproduzir uma visão predominantemente branca e de classe média, subestimando a amplitude da violência praticada contra grupos marginalizados, como povos indígenas e comunidades negras. Essa crítica ressalta a necessidade de incorporar perspectivas diversas que ampliem a compreensão histórica do período, contribuindo para um debate mais inclusivo e representativo. A existência de iniciativas complementares, como podcasts e exposições que trazem abordagens afrocentradas e de outras minorias, indica que o diálogo sobre a ditadura está em constante expansão e que o filme, mesmo em suas limitações, atua como um ponto de partida para essa pluralidade de narrativas.

4. O Papel Transformador do Reconhecimento Internacional

O prestígio conferido pelo Oscar não se restringe ao âmbito artístico, mas assume uma dimensão simbólica e política de extrema relevância. O reconhecimento internacional do filme reforça a importância de revisitar e discutir os capítulos sombrios da história brasileira, servindo de estímulo para a continuidade das lutas por memória, verdade e reparação. Ao elevar o debate para as esferas pública e política, “Ainda Estou Aqui” contribui para que novas medidas – como a potencial reconvenção das comissões de memória e a criação de espaços museológicos dedicados ao período ditatorial – ganhem visibilidade e força na agenda nacional.

Conclusão

“Ainda Estou Aqui” se estabelece, portanto, não apenas como uma obra cinematográfica de destaque, mas como um veículo de transformação social e política. Ao confrontar o passado e denunciar as insuficiências das medidas de reparação, o filme impulsiona debates que transcendem o campo da arte, dialogando diretamente com as demandas históricas por justiça e com a necessidade de reconfigurar a memória coletiva. Em um contexto marcado por avanços tímidos e retrocessos pontuais, a obra de Walter Salles reafirma a capacidade do cinema de provocar mudanças e de instigar uma reflexão profunda sobre o papel do Estado e da sociedade na construção de uma história mais justa e inclusiva.











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