Religião como Constructo Social: Análise das Funções de Dominação e Coesão Social
Religião como Constructo Social: Análise das Funções de Dominação e Coesão Social
Autor: Fabiano Cortez Prometi
Resumo: Este artigo examina a tese de que a religião é um constructo social primordialmente voltado ao controle e domínio das massas. Partindo das perspectivas clássicas da Teoria do Conflito, notavelmente o pensamento marxista, analisamos a religião como um aparelho ideológico. Em contraponto, mobilizamos as teorias funcionalistas de Émile Durkheim, que veem a religião como um mecanismo fundamental para a coesão social e a integração moral da comunidade. Adicionalmente, incorporamos a perspectiva weberiana e fenomenológica, que foca no papel da religião na provisão de sentido (teodiceia) diante do sofrimento e do caos. Argumentamos que, embora a religião tenha sido historicamente instrumentalizada como ferramenta de poder, sua redução a apenas essa função é insuficiente. Concluímos que a religião é um fenômeno social dialético, capaz de atuar simultaneamente como força de legitimação da ordem (domínio) e como fonte de contestação e transformação social (libertação).
Palavras-chave: Sociologia da Religião; Teoria do Conflito; Funcionalismo; Constructo Social; Ideologia.
1. Introdução
A afirmação de que a religião é um "constructo criado pelo homem para o domínio das massas" ecoa uma das críticas mais potentes e duradouras ao fenômeno religioso, enraizada no Iluminismo e formalizada nas ciências sociais do século XIX. Esta tese postula que as instituições religiosas, seus dogmas e rituais não possuem uma origem transcendental, mas sim uma base imanente, humana, voltada para a manutenção de estruturas de poder e desigualdade social.
Este artigo se propõe a analisar academicamente esta hipótese. Para tal, este estudo não busca validar ou refutar a existência do transcendental — uma questão teológica e metafísica fora do escopo da análise sociológica —, mas sim investigar as funções sociais da religião.
A religião, do ponto de vista sociológico, é inegavelmente um constructo social. Ou seja, é um sistema de crenças, símbolos e práticas criado, mantido e modificado por grupos humanos ao longo da história. A questão central, portanto, não é se ela é um constructo, mas para quais fins esse constructo opera. A tese do "domínio" é uma das respostas possíveis, mas não a única.
2. A Perspectiva Crítica: Religião como Ideologia e Dominação
A visão da religião como ferramenta de domínio está intrinsecamente ligada à Teoria do Conflito, cujo expoente máximo é Karl Marx.
2.1. Marx e o "Ópio do Povo"
Para Karl Marx, a religião não é a causa da opressão, mas sim um sintoma e, simultaneamente, um mecanismo de sua perpetuação. Em sua Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, Marx (1844) cunha a famosa metáfora: "A religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, assim como é o espírito de uma situação sem espírito. Ela é o ópio do povo."
Nesta análise, a religião funciona de duas maneiras:
Como analgésico (Ópio): Ela oferece consolo às massas exploradas (o proletariado) ao prometer uma recompensa na vida após a morte, tornando a miséria da vida presente mais suportável.
Como legitimação ideológica: Ela justifica as hierarquias sociais como sendo de "vontade divina". A estrutura de poder (reis, aristocratas, capitalistas) é apresentada como natural e ordenada por Deus, desencorajando a revolta contra a ordem estabelecida.
Nesta perspectiva, a religião é um componente da "superestrutura" ideológica que serve para manter a "base" econômica (o modo de produção) intacta. É, portanto, um constructo da classe dominante para assegurar o domínio sobre a classe trabalhadora.
2.2. Poder e Discurso
Pensadores posteriores, embora não estritamente marxistas, como Michel Foucault, também analisariam as instituições religiosas (como a Igreja) como locais de produção de "discursos de verdade" que disciplinam os corpos e regulam as populações, definindo o que é normalidade, pecado e virtude, exercendo assim uma forma de biopoder.
3. A Perspectiva Funcionalista: Religião como Coesão Social
Em oposição direta à Teoria do Conflito, a escola funcionalista, fundada por Émile Durkheim, oferece uma interpretação radicalmente diferente.
Para Durkheim, em As Formas Elementares da Vida Religiosa (1912), a questão não é o "domínio", mas a "integração". Ele argumenta que a religião é a forma mais primitiva de consciência coletiva. Ao adorar seus deuses ou totens, a sociedade está, na verdade, adorando a si mesma — seus próprios valores, normas e força coletiva.
As funções da religião, segundo Durkheim, são:
Coesão Social: Rituais religiosos (a "efervescência coletiva") reúnem as pessoas, fortalecendo os laços sociais e o sentimento de pertencimento.
Controle Social: A religião fornece um conjunto de regras morais (como os Dez Mandamentos) que regulam o comportamento individual em prol do bem coletivo.
Propósito e Sentido: A religião oferece respostas à questões existenciais, fornecendo estabilidade psicológica em face da contingência.
Nesta visão, a religião não é um constructo para dominar, mas um constructo que emerge da vida social para garantir sua própria sobrevivência. O "domínio" que ela exerce não é o de uma classe sobre outra, mas o da sociedade sobre o indivíduo, algo que Durkheim via como essencial para evitar a anomia (a falta de normas).
4. A Perspectiva do Sentido: Religião e a Teodiceia
Max Weber, embora reconhecesse os vínculos entre religião e estruturas econômicas (como em A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo), focou-se mais na necessidade humana de sentido.
Weber (1922) argumentou que a religião surge como resposta ao "problema da teodiceia" — a questão de como um Deus bom e onipotente pode permitir a existência do mal e do sofrimento injusto no mundo. As religiões oferecem diferentes "soluções" (como o carma, o pecado original, a predestinação) que racionalizam o sofrimento e dão sentido à existência.
Peter Berger, em O Dossel Sagrado (1967), desenvolve essa ideia, descrevendo a religião como um "dossel sagrado" (um "constructo") que os humanos criam para se protegerem do "caos" de um universo sem sentido.
Nesta ótica, a religião é menos sobre domínio e mais sobre a construção de uma "ordem" (cosmos) contra a "desordem" (caos).
5. Discussão: A Dialética da Religião
A análise sociológica contemporânea evita uma explicação monofuncional. A religião não é apenas dominação, nem apenas coesão, nem apenas sentido. Ela é um campo de disputa social.
A tese inicial de que a religião é um constructo para o domínio das massas é empiricamente validada em inúmeros contextos: a aliança entre Trono e Altar na Europa pré-moderna, o uso do "Direito Divino" dos reis, ou a justificação religiosa do apartheid na África do Sul.
Contudo, essa mesma tese falha em explicar outros fenômenos:
Religião como Resistência: A religião tem sido, também, uma poderosa força de contestação contra o domínio. A Teologia da Libertação na América Latina, por exemplo, usou princípios cristãos para lutar contra a opressão das massas e ditaduras militares.
Movimentos de Direitos Civis: Nos Estados Unidos, as igrejas negras, lideradas por figuras como Martin Luther King Jr., foram a espinha dorsal do movimento pelos direitos civis, usando a linguagem religiosa para exigir justiça e libertação, não para manter a opressão.
Religião e Revolução: O próprio Weber notou o potencial "profético" e revolucionário da religião, capaz de subverter ordens estabelecidas em nome de uma ética radical.
Portanto, a religião não é inerentemente uma ferramenta de domínio. Ela é uma linguagem, um sistema simbólico, um conjunto de instituições. Como qualquer constructo social poderoso, seu uso é disputado. Ela pode ser o "ópio" que legitima o status quo, mas também pode ser a "cafeína" que inspira a revolução.
6. Conclusão
A tese de que "as religiões são um constructo criado pelo homem para o domínio das massas" capta uma dimensão crucial, porém parcial, do fenômeno religioso. As ciências sociais demonstram que a religião, enquanto constructo social, é fundamentalmente polissêmica e multifuncional.
Ela inegavelmente serviu, e serve, como um poderoso aparelho ideológico para a legitimação da desigualdade e o exercício do poder, como postulado pela Teoria do Conflito.
No entanto, ela também opera como a fonte primária de coesão social e solidariedade moral (perspectiva funcionalista) e como o principal mecanismo de atribuição de sentido à experiência humana (perspectiva fenomenológica).
Reduzir a religião a uma única função — seja ela o domínio ou a coesão — é ignorar sua complexidade dialética. A religião é um campo de batalha simbólico onde as forças de dominação e as forças de libertação frequentemente utilizam a mesma linguagem e os mesmos símbolos para fins opostos.
7. Referências Bibliográficas (Exemplos)
BERGER, P. L. (1967). The Sacred Canopy: Elements of a Sociological Theory of Religion. Doubleday.
DURKHEIM, É. (1912). Les formes élémentaires de la vie religieuse. Presses Universitaires de France.
MARX, K. (1844). Zur Kritik der Hegelschen Rechtsphilosophie. Einleitung (Crítica da Filosofia do Direito de Hegel).
WEBER, M. (1922). Wirtschaft und Gesellschaft (Economia e Sociedade). Mohr Siebeck.
WEBER, M. (1905). Die protestantische Ethik und der Geist des Kapitalismus (A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo).
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