Falar dos outros é humano: a ciência da fofoca e seu papel na coesão — e no conflito — social
Falar dos outros é humano: a ciência da fofoca e seu papel na coesão — e no conflito — social
Data de publicação: 21 de dezembro de 2025Falar da vida alheia é um dos comportamentos mais antigos e universais da experiência humana. Presente em todas as culturas, atravessando classes sociais, idades e épocas históricas, a fofoca costuma ser tratada como vício moral ou desvio ético. No entanto, nas últimas décadas, a ciência — especialmente a psicologia social, a antropologia e a neurociência — passou a olhar o fenômeno com mais rigor e menos preconceito. O resultado é um quadro complexo: longe de ser apenas maledicência, a fofoca desempenha funções centrais na organização social, na transmissão de normas e até na sobrevivência das comunidades humanas.
Estudos antropológicos clássicos indicam que a fofoca surgiu muito antes da escrita e das instituições formais. Em grupos humanos primitivos, compartilhar informações sobre o comportamento de terceiros era uma estratégia adaptativa. Avisar quem era confiável, quem quebrava regras ou quem representava risco ajudava a manter a coesão do grupo e a reduzir conflitos diretos. O antropólogo Robin Dunbar, da Universidade de Oxford, propôs que a fofoca teria substituído, em sociedades maiores, o “cuidado social” observado entre primatas, como o ato de catar piolhos, funcionando como um cimento social baseado na linguagem.
A psicologia contemporânea reforça essa visão funcional. Pesquisas indicam que cerca de 60% a 70% das conversas cotidianas envolvem, direta ou indiretamente, comentários sobre terceiros. Um estudo publicado no Journal of Social and Personal Relationships mostrou que a maior parte da fofoca não é explicitamente negativa: ela pode ser neutra ou até positiva, como quando se compartilham elogios ou histórias inspiradoras. Esse dado desmonta a ideia de que fofocar é sempre sinônimo de difamar.
Do ponto de vista neurocientífico, falar da vida alheia também ativa sistemas de recompensa no cérebro. Pesquisas com neuroimagem funcional apontam que compartilhar informações socialmente relevantes estimula áreas associadas à dopamina, o que ajuda a explicar por que a fofoca é prazerosa. Além disso, estudos conduzidos pela Universidade de Stanford sugerem que indivíduos que compartilham fofoca tendem a ser vistos como mais informados e socialmente integrados, reforçando laços de pertencimento.
No mundo contemporâneo, a fofoca extrapolou os limites das conversas privadas e ganhou escala industrial com as tecnologias digitais. Redes sociais, aplicativos de mensagens e plataformas de entretenimento transformaram a curiosidade sobre a vida alheia em um dos motores centrais da economia da atenção. Celebridades, influenciadores e políticos têm suas rotinas, deslizes e intimidades permanentemente expostos, muitas vezes sem mediação ética ou jornalística.
Esse processo tem efeitos ambíguos. Por um lado, a circulação rápida de informações pode fortalecer mecanismos de responsabilização social, como no caso de denúncias de assédio ou corrupção que emergem de relatos compartilhados informalmente. Por outro, a fofoca digital pode gerar linchamentos simbólicos, desinformação e danos psicológicos profundos. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde, o cyberbullying — frequentemente alimentado por boatos — está associado ao aumento de ansiedade, depressão e ideação suicida, especialmente entre jovens.
A ciência também aponta diferenças culturais na forma como a fofoca é percebida e utilizada. Pesquisas comparativas mostram que sociedades mais coletivistas tendem a encarar a fofoca como um instrumento legítimo de controle social, enquanto culturas mais individualistas a associam com invasão de privacidade. Ainda assim, em ambos os contextos, ela cumpre a função de sinalizar normas, limites e expectativas de comportamento.
Para ilustrar esse papel ambivalente, pode-se imaginar um infográfico comparando os efeitos sociais da fofoca positiva e negativa. De um lado, benefícios como fortalecimento de vínculos, aprendizado social e cooperação; de outro, riscos como estigmatização, exclusão e propagação de informações falsas. Fonte: adaptação de dados do Journal of Personality and Social Psychology e da American Psychological Association.
O debate sobre a fofoca ganha relevância política quando se observa seu impacto na esfera pública. Em tempos de polarização, boatos e narrativas informais moldam percepções coletivas com mais força do que dados verificados. A fronteira entre fofoca, rumor e fake news torna-se difusa, exigindo respostas institucionais, educacionais e tecnológicas. Iniciativas de letramento midiático e regulação das plataformas digitais surgem, assim, como tentativas de preservar o potencial comunicativo da fofoca — enquanto se mitigam seus danos sociais.
O futuro do fenômeno está intimamente ligado ao desenvolvimento tecnológico. Com a ascensão da inteligência artificial, algoritmos já são capazes de amplificar rumores em escala massiva, selecionando conteúdos emocionalmente carregados por sua maior capacidade de engajamento. Ao mesmo tempo, essas mesmas tecnologias podem ser usadas para detectar padrões de desinformação e reduzir a propagação de boatos nocivos. O dilema ético permanece: como equilibrar liberdade de expressão, curiosidade humana e responsabilidade social?
Compreender a ciência da fofoca, portanto, é mais do que um exercício de curiosidade acadêmica. Trata-se de reconhecer um comportamento profundamente humano, que pode tanto fortalecer comunidades quanto corroer democracias. O desafio contemporâneo não é silenciar a fofoca, mas aprender a lidar com ela de forma crítica, consciente e socialmente responsável.
Bibliografia (normas ABNT)
DUNBAR, Robin. Grooming, gossip and the evolution of language. Cambridge: Harvard University Press, 1996.
FOSTER, Eric K. Research on gossip: taxonomy, methods, and future directions. Review of General Psychology, Washington, v. 8, n. 2, p. 78–99, 2004. Disponível em: https://doi.org/10.1037/1089-2680.8.2.78. Acesso em: 21 dez. 2025.
MESQUITA, Luís et al. The social consequences of gossip. Journal of Personality and Social Psychology, Washington, v. 112, n. 2, p. 229–245, 2017.
SUPERINTERESSANTE. A ciência da fofoca: por que gostamos tanto de falar da vida alheia. São Paulo: Abril, 2023. Disponível em: https://super.abril.com.br/ciencia/a-ciencia-da-fofoca-por-que-gostamos-tanto-de-falar-da-vida-alheia/. Acesso em: 21 dez. 2025.
WORLD HEALTH ORGANIZATION. Cyberbullying and mental health. Genebra: WHO, 2022. Disponível em: https://www.who.int. Acesso em: 21 dez. 2025.
Créditos
Reportagem: Fabiano C. Prometi
Edição: Fabiano C. Prometi
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