A Crise da Democracia Liberal: Evidências, Especialistas e o Caso dos EUA
A Crise da Democracia Liberal: Evidências, Especialistas e o Caso dos EUA
Introdução
A democracia liberal — entendida como sistema que combina eleições livres e competitivas, liberdade de expressão, pluralismo político, Estado de direito e proteção das liberdades civis — está se tornando alvo de fortes críticas, não apenas de ideólogos ou dissidentes do sistema, mas de dados empíricos e de especialistas politólogos, economistas e teóricos institucionais. Este artigo busca compilar as evidências mais recentes de que a democracia liberal tem falhado em diversos aspectos centrais: entrega de prosperidade justa, manutenção de instituições fortes, contenção de abuso de poder, e preservação da paz interna. Em seguida, analisa a situação específica dos Estados Unidos, com suas tensões políticas recentes, para avaliar o risco de crise civil ou institucional.
Parte I: Evidências empíricas de falhas da democracia liberal globalmente
1. Retrocesso democrático (autocratização)
a) Dados do V-Dem Institute
O relatório Democracy Report 2025 do V-Dem mostra que 45 países estão em processo de autocratização em 2024, um aumento em relação ao ano anterior.
A liberdade de expressão aparece como um dos indicadores mais afetados: em 2024, este direito declinou significativamente em 44 países — um recorde.
Outros componentes com forte deterioração são: deliberação política, consulta à sociedade civil, justiça previsível das leis, autonomia da oposição política.
b) Índice de eleições livres e justas — IDEA
O International IDEA reportou que o índice global para eleições livres e justas sofreu a pior queda registrada em décadas em 2023.
A participação eleitoral também tem caído globalmente, uma parte importante do déficit democrático.
2. Desigualdade econômica e falha na redistribuição
Em muitos países democráticos ou parcialmente democráticos, políticas neoliberais ou de austeridade reforçaram a concentração de renda. Um relatório da Oxfam mostra que, entre 106 países com empréstimos ou projetos com o FMI ou Banco Mundial, 60% apresentam desigualdade de renda alta ou crescente.
A desigualdade crescente corrói a percepção de legitimidade do sistema, pois pessoas com menor poder econômico sentem-se excluídas das decisões políticas ou dos benefícios do Estado. Especialistas em economia política argumentam que a democracia liberal, se não vier acompanhada de políticas fortes de inclusão, regulação e serviços públicos, só atenderá bem as camadas médias e altas.
3. Erosão institucional e captura política
O declínio em liberdade de expressão e o assédio a jornalistas mostram que, em muitos casos, o Estado de direito e o pluralismo estão sendo sistematicamente minados.
Em países como Índia, Brasil, Hungria, entre outros, observou-se deterioração dos padrões institucionais: independência judicial fragilizada, pressão sobre organismos reguladores, controle ou influência política sobre o aparato estatal para favorecer o partido no poder. V-Dem classifica a Índia como uma “electoral autocracy” (autocracia eleitoral), ou seja, mantém eleições, mas muitos requisitos fundamentais da democracia liberal (como liberdade de imprensa plena, direitos civis) estão comprometidos.
4. Perda de legitimidade e polarização
A polarização política — ideológica, cultural, social — tem aumentado em muitos democracias, inclusive nas mais antigas. Isso gera degradação do debate público, aumento de desinformação, dificuldade de consenso político para responder a crises (econômicas, ambientais, sanitárias). V-Dem nota que mais de um quarto dos países experimentam aumento na polarização.
Declínio no engajamento civil formal: menos voto, menos confiança nas instituições, menos cooperação ou consentimento com decisões de governo que não agradem diretamente um grupo.
Parte II: Especialistas e teorias sobre as fraquezas estruturais
Staffan I. Lindberg (V-Dem) e colegas afirmam que estamos vivenciando uma “onda de autocratização” que dura décadas, lenta, mas pervasiva. Eles destacam que muitos regimes autocráticos modernos não aboliram eleições, mas surgem através do enfraquecimento gradual das normas liberais.
Especialistas em ciência política como Larry Diamond, Nancy Bermeo, Yascha Mounk têm escrito amplamente sobre o “democratic backsliding” — ou retrocesso democrático — mostrando que a fragilidade está frequentemente em normas informais: respeito à alternância de poder, independência judicial, limites ao uso do poder executivo.
Economistas como Joseph Stiglitz, Thomas Piketty destacam que desigualdade extrema não é sustentável nem em termos econômicos nem políticos: prejudica crescimento, aumenta instabilidade social e mina a coesão necessária para que políticas públicas funcionem.
Parte III: Dados econômicos específicos
Indicador Tendência recente Impacto sobre democracia liberal
Índice de Democracia Eleitoral (V-Dem) Média dos países caiu de cerca de 0,53 (em 2012) para cerca de 0,49 em 2024. Demonstra que, em população-ponderada, as liberdades eleitorais estão recuando.
Desigualdade de renda (coeficiente de Gini / taxa de pobreza) Em muitos países beneficiados por organismos multilaterais, desigualdade é alta ou subindo. Alta desigualdade prejudica mobilidade social, aumenta ressentimento, e reduz confiança no sistema político.
Liberdade de expressão e imprensa Declínio registrado em dezenas de países; ataque crescente a jornalistas, programas estatais de censura ou desinformação. Sem liberdade de expressão, democracia se torna formal: eleições podem existir, mas competição de ideias e fiscalização ficam comprometidas.
Parte IV: O caso dos Estados Unidos — decisões recentes e risco de crise interna
1. Tendências institucionais recentes
Desde a posse mais recente, o presidente tem usado ordens executivas significativas, propostas e medidas federais para alterar políticas de imigração (como a Executive Order 14159 “Protecting The American People Against Invasion”), removendo proteções ou suspendendo práticas que anteriormente dependiam de legislação ou atuação judicial.
Há relatos de uso ampliado das forças federais em cidades locais para lidar com eventos civis, protestos, imigração, frequentemente em tensos confrontos com autoridades estaduais ou municipais, algumas delas opositoras no plano político. Recentemente houve disputas legais (governadores de estados democratas processando ações federais) alegando abuso de autoridade.
2. Retórica, polarização e legitimidade
A retórica oficial e de bases políticas tem enfatizado “segurança”, “ameaças internas”, “imigração descontrolada” e “invasão”, termos carregados que mobilizam emocionalmente e tendem a gerar medo social. Em muitos casos, essas mensagens são usadas para justificar uso de poderes excepcionais ou expansão do papel do Estado (ou, inversamente, restrição de direitos civis em nome da ordem).
Também aumentaram os questionamentos públicos sobre resultados eleitorais, confiabilidade de processos eleitorais, e acusações de fraude ou manipulação, inclusive vindas de autoridades do mais alto escalão, o que mina a confiança institucional. Relatórios apontam episódios de violência política, ameaças a funcionários públicos, preocupações de que eleições sejam contestadas com base em alegações infundadas.
3. Risco de guerra civil ou de conflito violento interno
Avaliação probabilística
Embora o risco de uma guerra civil no sentido clássico — grupos armados organizados lutando pelo controle do Estado ou de território — continue baixo, o risco de violência política localizada, polarização extrema e confrontos entre grupos políticos (inclusive milícias ou grupos paramilitares) está em crescimento.
A militarização de ações federais em cidades, os confrontos judiciais entre autoridades federais e estaduais, e a politização das forças de segurança elevam a probabilidade de escaladas. Por exemplo, ordens executivas que envolvem uso da Guarda Nacional ou Forças Federais em jurisdições controladas por autoridades políticas adversárias aumentam tensões. Jornalistas e especialistas alertam que isso pode criar precedentes perigosos se não houver checagem institucional (Judiciário, legislativo) e resistência civil pacífica.
Fatores que aumentam o risco
Falta de confiança entre diferentes grupos sociais e políticos; percepção de que o sistema está sendo capturado por uma facção.
Polarização ideológica: os cidadãos, aliados partidários ou ideologicamente alinhados, podem ver adversários não só como oposição política legítima, mas como inimigos existenciais.
Retórica inflamada que justifica medidas excepcionais como “necessárias” em face de “ameaça interna”.
Ações executivas que contornam o Legislativo ou o Judiciário, ou tentativas de enfraquecer a independência desses poderes.
Fatores de contenção
Instituições federais têm resistido até agora: tribunais, cortes estaduais, órgãos regulatórios independentes continuaram atuando em muitos casos. Isso retarda ou bloqueia excessos que poderiam escalar para crise institucional maior.
O sistema de eleições, mesmo com desafios e acusações, ainda se mantém, com práticas estabelecidas, observação internacional e doméstica, apelo legal, etc.
A sociedade civil e imprensa ainda têm grau de liberdade para denunciar, mobilizar protestos etc., o que funciona como amortecedor de crises.
4. Cenários possíveis
Cenário Probabilidade Moderada Elementos de gatilho
Violência política localizada Mais provável Protestos que degeneram em confrontos com forças federais ou estaduais; ações de milícias ou grupos organizados; disputas sobre aplicação de leis federais/em estaduais.
Crise constitucional/institucional Moderada-alta se tendências persistirem Judicialização intensa; desacato de leis ou de decisões judiciais; pressão sobre tribunais ou legislaturas; uso sistemático de ordens executivas para contornar outras instâncias.
Guerra civil alargada Baixa a muito baixa Demandaria controle territorial por grupos organizados, o que ainda parece improvável no curto prazo, dado o poder institucional vigente.
Parte V: Reformas necessárias e conclusão
Reformas recomendadas
1. Reforço das normas liberais — insistir não só em leis formais, mas em normas informais: alternância de poder, respeito às minorias, independência judicial, integridade eleitoral, liberdade de imprensa de fato.
2. Políticas de redistribuição mais eficazes — tributação progressiva, sistemas públicos robustos de saúde, educação, transporte; garantir que crescimento econômico se traduza em melhoria de vida para a maioria.
3. Transparência, fiscalização, prestação de contas — fortalecer órgãos independentes, proteção a jornalistas, leis contra corrupção; garantir que decisões executivas estejam sujeitas à supervisão democrática.
4. Despolarização e cultura do consenso — promover diálogo, respeito mútuo, educação cívica; reduzir incentivos à retórica antagônica e à política de “nós contra eles”.
5. Limites institucionais ao poder executivo — assegurar que uso de poderes extraordinários seja monitorado e restrito; fortalecer o papel do Legislativo e Judiciário como freios e contrapesos.
Conclusão
A democracia liberal, embora continue sendo a alternativa mais valorizada em muitos lugares, revela falhas estruturais que estão sendo demonstradas na prática: desigualdade crescente, erosão de liberdades civis, captura institucional, polarização e tensões sociais. Não é apenas uma questão de “melhorar os líderes” ou “mais democracia”, mas de preservar os mecanismos que garantam que a democracia seja liberal — isto é, respeitadora dos direitos, pluralista, com instituições fortes. Nos EUA, vemos um exemplo de tensão extrema: o risco de violência política e de crise institucional é real, embora uma guerra civil em larga escala ainda pareça pouco provável num horizonte imediato, dadas as barreiras institucionais existentes. O que está em jogo é se essas barreiras resistirão ou se serão desgastadas a ponto de permitir rupturas mais graves.
A Crise da Democracia Liberal: Evidências, Especialistas e o Caso dos EUA
Autor: Fabiano C. Prometi
Publicação: Horizontes do Desenvolvimento – Inovação, Política e Justiça Social
Data: Outubro de 2025
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